segunda-feira, agosto 18, 2003

Naufragios

O naufrágio do galeão Sacramento (1668)

Em Fevereiro de 1668, o galeão português Sacramento, capitaneado pelo General Francisco Correia da Silva, partiu do Tejo, comboiando uma armada pertencente à Companhia Geral do Comércio do Brasil.

A bordo seguiam quase um milhar de pessoas, em que se contavam 800 marinheiros e soldados e 200 passageiros, clérigos e franciscanos. Construído no Porto por Francisco Bento, o Sacramento tinha, no ano anterior, sido navio-almirante da armada que tinha protegido a costa portuguesa dos piratas argelinos, armando nessa altura 60 canhões e transportando 824 marinheiros e soldados.

E todo aquele armamento não era pouco, já que a situação no Brasil se vinha a degradar desde 1630. Com efeito, os Holandeses tinham logrado com o domínio militar do Recife, o controlo da navegação naquelas paragens o que lhes permitia exercer um verdadeiro bloqueio ao comércio do açúcar. Sem meios para enfrentar o poderio naval holandês, Portugal fez escoar o ouro branco através de portos secundários, o que veio a dificultar a organização de comboios de defesa, levando à perda, só no período de 1633 a 1634, de 124 navios mercantes.

Para obstar a esta verdadeira sangria de navios, Dom João IV vai tentar, logo a seguir à Restauração, manter a independência nacional e a soberania do Brasil, graças ao incremento do poderio naval português. Em 1643, e a pedido do monarca, Salvador Correia de Sá indicou as acções que eram necessárias, em seu entender, para reparar a situação no Brasil, surgindo o Regimento de 25 de Março de 1643, que instituiu as frotas comboiadas. Em 1647, este sistema de comboios navais revelou-se infrutífero perante a investida holandesa, o que levou o Padre António Vieira a recomendar a criação de uma Companhia Geral do Comércio do Brasil.

O naufrágio

A 5 de Maio 1668, depois de uma viagem sem novidades, o Sacramento chegou à vista do porto da Baía de Todos os Santos, actual Estado da Baía. O tempo estava péssimo, com ventos sul de grande intensidade que ameaçavam destroçar a frota de encontro à costa de Salvador. Apesar da tempestade, o piloto decidiu tentar a sua sorte e fazer-se ao porto.

Às sete da tarde, o Sacramento colidiu violentamente contra o Banco de Santo António, submerso a cerca de 5 metros da superfície. Apesar de insistentemente pedir socorro, disparando todas as suas peças de artilharia, o galeão acabou por se afundar sozinho, às onze horas da noite, já que o estado do mar não permitiu que qualquer embarcação fosse em seu socorro. Dos cerca de 1000 tripulantes e passageiros, apenas se salvaram 70. O corpo do General Correia da Silva, juntamente com o de centenas de outros, acabou por dar à costa no dia seguinte.

O naufrágio do Sacramento foi localizado, em 1973, por mergulhadores amadores que comunicaram o seu achado aos Ministérios da Marinha e da Educação e Cultura do Brasil. Em 1976, uma equipa de 30 mergulhadores da Armada, dirigida pelo arqueólogo Ulysses Pernambucano de Mello, procedeu a uma primeira prospecção do local, nas coordenadas 13º 12’ 18’’S e 38º 30’ 04’’W. Os destroços, situados a cerca de 33 metros de profundidade, consistiam num aglomerado de pedras de lastro - com cerca de 30 metros de comprimento por 13 de largura, elevando-se a cerca de 3 metros do fundo - rodeado por 36 canhões de ferro e de bronze bem como por 5 âncoras e variados restos de cerâmicas, majólica e recipientes de barro.

A identificação do navio foi relativamente fácil, apesar da artilharia compreender peças de origens tão díspares como falconetes holandeses fundidos em 1646; colubrinas inglesas datadas de meados do século XVI; dois meios canhões, também ingleses, datados de 1590 e de 1596; e uma série de peças portuguesas, a maioria do fundidor Matias Escartim, datadas de 1649 e 1653. Todas as peças estavam marcadas com a divisa da Companhia Geral do Comércio do Brazil Spero in Deo e, por vezes, com a esfera armilar.

Foi com base nas indicações presentes nas bocas de fogo que foi possível determinar que o afundamento não teria ocorrido antes de 1653 (data da peça de fogo mais recente) e que o navio pertenceria, muito provavelmente, à Companhia Geral do Comércio do Brasil, criada em 1649. Para além dos canhões, foram também encontradas algumas moedas de prata, espanholas e portuguesas. Destas últimas, algumas tinham sido contra-marcadas numa das faces, de modo a que o seu valor fosse aumentado em 25%. Como o Alvará Régio que ordenou essa contra-marcação datava de 22 de Março de 1663, foi fácil determinar que a data terminus post quem do naufrágio seria posterior à data desse Alvará.

Por entre os escombros e as pedras de lastro, vários artefactos foram surgindo à luz do dia, depois de mais de três séculos de esquecimento. Foram assim encontrados 5 compassos de navegação, em bronze, bem como dois astrolábios. Parte da carga original do navio foi também recuperada. Entre esta encontravam-se várias centenas de dedais de costura, bem como garrafas e imagens em chumbo de Cristo, que teriam pertencido a um qualquer carregamento de crucifixos.

A carga incluia também vários milhares de balas de chumbo contidas em jarras de barro bem como têxteis, de que apenas sobreviviam os selos, em chumbo, da Alfândega de Lisboa. Os pertences quotidianos da tripulação foram também recuperados. Entre estes contavam-se pratos de majólica e porcelanas portuguesas e chinesas, bem como a baixela pessoal do general Correia da Silva, que nunca mais teve oportunidade de a utilizar, depois daquele dia fatídico de 5 de Maio de 1668.

Para saber mais:

MELLO, U. 1979, “The shipwreck of the galleon Sacramento - 1668 off Brazil”, The International Journal of Nautical Archaeology and Underwater Exploration, 8.3: 211 - 223
ESPARTEIRO, A. 1974, Três Séculos de Mar, Caravelas e Galeões, Colecção Estudos, Ministério da Marinha, Lisboa
NEILO, E. 1975, Olinda Restaurada: Guerra do Açúcar no Nordeste, 1630 - 1654, Rio de Janeiro
RIBEIRO, A. 1992, “Armada de Guarda Costa, Frotas e Comboios do Brasil”, in Revista de Marinha, ano 56, Junho 1992, 828: 30 - 34
posted by Alexandre @ 17:43