quarta-feira, julho 30, 2003

Naufragios


João Baptista Lavanha

A partir de meados do século XVI, a construção naval deixou de ser domínio do empirismo dos mestres das ribeiras e passou a sofrer um processo de acreditação científica. Este processo passou pela teorização das formas das naus e pela matematização da sua estrutura, que se tornou cada vez mais estandardizada.

Esta transformação foi sublinhada pelo aparecimento de vários tratados teóricos, dos quais o mais antigo conhecido, a nível ibérico, é o Livro da Fábrica das Naus, do Padre Fernando de Oliveira - que o terá redigido por volta de 1550.

Logo a seguir, aparece o tratado Instrucciones Nauticas para Navegar, do espanhol Diego Garcia de Palacio que é complementado, por volta de 1608, pelo Livro Primeiro da Architectura Naval, redigido por um português que tinha muito pouco de marinheiro: João Baptista Lavanha.

Um matemático judeu

João Baptista Lavanha nasceu em meados do século XVI, em ano desconhecido, e de origem judia. Seu pai, Luis de Lavanha, era um fidalgo da Corte e da sua mãe, D. Jerónima Dança, nada se sabe. A sua infância e adolescência são obscuras, presumindo-se apenas que tenha estudado em Roma, ao serviço do rei D. Sebastião, de quem foi professor de matemática.

Após o desastre de Alcântara e a consequente união das coroas ibéricas, Lavanha caiu nas graças dos reis espanhóis, tendo sido professor de matemática de Filipe II, Filipe III e Filipe IV. A sua fama como matemático levou mesmo a que Filipe II o nomeasse como Cosmógrafo da Corte, onde passou a lidar com todos os assuntos relativos à cosmografia, à geografia e à topografia.

A 4 de Novembro de 1586, as suas qualidades de engenharia civil promovem-no a Engenheiro-Mor do Reino de Portugal - sem que no entanto viesse a abandonar as suas funções de professor de matemática, na recém criada Academia de Matemática de Madrid, onde chegou a ter como alunos Lope de Vega e Cervantes.

O agravamento do estado de saúde do Cosmógrafo Mor, Tomás de Orta, levou a que, a 13 de Fevereiro de 1591, Lavanha fosse nomeado para esse cargo, de grande responsabilidade numa potência ibérica que dependia de mapas e tabelas acuradas para a realização da sua obra colonial.

Depois de viver em Portugal até 1599, Lavanha voltou a Madrid, donde partiu para a Flandres a serviço de Filipe III, onde permaneceu, pelo menos até 1601. Em 1604, Lavanha encontrava-se em Valladolid, donde partiu, dois anos mais tarde, para a execução de obras hidráulicas de grande vulto, nomeadamente as que estavam relacionadas com o Rio Douro.

Em 1609, Lavanha entra para a Ordem de Cristo, apesar da sua ascendência judaica lhe causar alguns dissabores - que tiveram de ser resolvidos pela intervenção directa de Filipe III, pronunciando-se este favorável à sua adesão à Ordem a 10 de Abril de 1607. Em 1610, Lavanha iniciou a recolha de dados de ordem geográfica que lhe permitiu a elaboração, em 1615, de um mapa da província de Aragão - tão completo e detalhado que este vigorou até finais do século XVIII. Três anos depois Lavanha encontrava-se ocupado com as obras de abastecimento de água à cidade de Lisboa, onde vem a ser nomeado Cronista Mor do Reino, a 9 de Março do mesmo ano.

Lavanha, que casou com D. Leonarda de Mesquita, de quem teve seis filhos, vem a falecer, em Madrid, no ano de 1624, profundamente endividado, apesar de toda uma distinta carreira nas mais variadas áreas do saber humano. O seu conhecimento, verdadeiramente enciclopédico, encontra-se patente na sua obra Compendio de las Cosas de España e Descripcion del Universo, que apresenta, de uma forma sistemática e abrangente, um resumo dos conhecimentos científicos da época.

João Baptista Lavanha participou também na organização da publicação da Quarta Década da Ásia, de João de Barros, a pedido dos seus herdeiros, onde foi o responsável pelas cartas geográficas das cidades de Bengala, Gurajate, e Java.

Um tratado naval

O manuscrito do Livro Primeiro da Architectura Naval, de João Baptista Lavanha, encontra-se na Biblioteca da Real Academia de História de Madrid, tendo permanecido praticamente desconhecido , ao contrário do que sucedeu com as obras da sua autoria Naufrágio da Nau S. Alberto, de 1597 - incluída na colectânea História Trágico-Marítima, compilada por Bernardo Gomes de Brito - e Regimento Náutico, de 1595.

Este seu Livro Primeiro - que se encontra inacabado - é a sua única obra dedicada à construção naval. A riqueza das suas ilustrações bem como a catadupa de informações práticas referentes à construção naval ibérica no virar do século XVI que lá vêm referenciadas, levam a que o seu Livro Primeiro da Architectura Naval seja considerado como um dos únicos tratados capazes de fornecer ao arqueólogo naval as necessárias pistas para a compreensão da problemática naval desse período.

Infelizmente, este Livro permaneceu escondido aos olhos do público especializado até que, em 1956, João da Gama Pimentel Barata, ao seguir as indicações de Cesáreo Fernandez Duro - um historiador naval espanhol do século XIX, que o tinha consultado aquando da elaboração da sua obra Disquisiciones Nauticas - o veio a redescobrir, arquivado na Biblioteca de Madrid.

De Lavanha encontram-se ainda por publicar trabalhos seus tais como o Tratado da Arte de Navegar, o Tratado da Gnomonica e, finalmente, o Tratado do Astrolábio, de que existe um códice na Biblioteca do Observatório Astronómico de Coimbra.

Para saber mais:
BARATA, J. 1965, O Livro Primeiro da Architectura Naval de João Baptista Lavanha, in Ethnos, vol. IV, Lisboa
CORTESÃO, A. & MOTA, A. 1960, Portugaliae Monumenta Cartographica, vol. IV, Lisboa
LAVANHA, J. 1996, Livro Primeiro da Architectura Naval, Academia de Marinha, Lisboa
OLIVEIRA, M. 1989, Livro de traças de carpintaria com todos os modelos e medidas para se fazerem toda a navegaçao, assi de alto bordo como de remo traçado, Academia de Marinha, Lisboa
RIETH, E. 1996, Á propos du terme Espalhamento chez Manoel Fernandes (1616), Neptunia, nº 203, Association des Amis des Musées de la Marine, Paris
STEFFY, J. 1994, Wooden ship building and the interpretation of shipwrecks, Texas A&M University Press, College Station
posted by Alexandre @ 18:23