domingo, julho 27, 2003

Naufragios


Pescadores, monges, soldados e naufrágios: a arqueologia das Berlengas

As Berlengas são um arquipélago localizado a cerca de 6 milhas de Peniche, formando três grupos de ilhéus que englobam a Berlenga Grande e os seus recifes adjacentes, as Estelas e os Farilhões.

As ilhas integram a Rede Nacional de Áreas Protegidas, constituindo Reserva Natural desde 1981. Mas o arquipélago não é só um lugar inóspito onde habitam apenas algumas espécies animais e vegetais. É também um lugar com história tendo sido óbvio ponto de paragem e de abrigo desde a mais remota antiguidade, cenário obrigatório da lendária rota das Cassiterides, cuja tradição remonta à Idade do Bronze - segundo alguns historiadores, teria até havido na ilha um santuário fenício dedicado a Baal-Melkart.

A época romana

Apesar dos mitos sobre a perigosidade da navegação para além do Estreito de Gibraltar, está implícita nos testemunhos dos geógrafos e historiadores da Antiguidade a evidência de uma navegação de rotina ao longo da costa atlântica da Península Ibérica tanto mais que as excelentes qualidades náuticas dos navios de tradição mediterrânica da época romana - designadamente dos próprios navios de carga de grande tonelagem - permitiam-lhes remontar ao vento, bolinando em condições que os levavam a navegar, vindos do Mediterrâneo, para além do cabo de São Vicente.

Esta capacidade é mesmo atestada pelo facto curioso que coloca Júlio César a desembarcar nas proximidades das Berlengas. Com efeito, no ano de 61 a.C., César teria, em perseguição de um contigente de lusitanos da Serra da Estrela, acampado ao largo de uma ilha onde estes finalmente se refugiaram. Uma primeira tentativa de invasão da ilha, através de balsas artesanais construídas pelo exército romano, falhou redondamente e apenas Publio Escevio líder da expedição, escapou à matança infligida pelos lusitanos entrincheirados na ilha. Perante o desastre, César mandou vir de Cádiz uma frota de algumas dezenas de navios mercantes que embarcaram, em finais de Agosto, os cerca de 18 mil soldados do então Governador da Hispania Ulterior. Desembarcados na ilha, os romanos submeteram, sem travar combate, os revoltosos acossados pela falta de víveres. Resta a dúvida sobre se a ilha em causa seria as Berlengas ou a própria Peniche, na altura ainda separada do continente, embora a maioria dos investigadores se incline mais para a primeira hipótese.

Testemunho irrefutável da presença romana, o mar das Berlengas apresenta actualmente o maior conjunto, proveniente do meio marítimo português, de ânforas conhecido - no que tem, aliás, um complemento imediato nos achados de cepos de âncora em chumbo.

Com efeito, entre 1984 e 1988 foram recuperadas cerca de uma dúzia de ânforas romanas, a sudeste do Carreiro do Mosteiro e a cerca de 23 metros de profundidade. Destas salientamos duas ânforas do tipo Dressel 1, a típica ânfora vinária itálica datável de cerca 130 a.C., bem como algumas Lusitanas - tipos 2 e 4 - de envase de produtos piscícolas, compreendidas entre a primeira metade do século I e os finais do século II e deste até aos finais do século V, respectivamente. Em todo o caso, o tipo Haltern 70 – datável de um período compreendido entre os meados do século I a.C. e os meados do século seguinte - surge como o mais bem representado, correspondendo a cerca de 50% das ânforas registadas.

Complementarmente aos achados de ânforas, foi localizada uma vintena de cepos de âncora em chumbo - habitualmente atribuídos à época romana quando, na realidade, se considera hoje que a sua utilização se terá generalizado a partir do século IV a.C. – a maioria dos quais recuperadas de uma zona, ao largo, definida pela área compreendida entre o Carreiro do Mosteiro, a Fortaleza, o Melreu e a enseada de Flandres.
Alguns destes cepos apresentam motivos decorativos, nomeadamente ossinhos em relevo em duas faces alternadas dos braços - alinhados no lance da sorte representam o talus, o jogo mais popular da Antiguidade, com um significado augural e auspicioso - e golfinhos – protectores dos navegantes e salvadores dos náufragos, símbolo por excelência da navegação tranquila.

Curiosamente, um dos grandes cepos recuperados na Berlenga possuía ainda alguns fragmentos da alma de madeira, o que permitiu determinar por radiocarbono o período da sua manufactura. A sua datação – compreendida entre os finais do século V e o início do século IV a.C. – faz com que este cepo pré-romano seja o mais antigo cepo de âncora conhecido de toda a Antiguidade podendo mesmo fazer recuar a data em que se pensava ter ocorrido a generalização do uso de cepos em chumbo no Mediterrâneo.

O período moderno

Que a ilha era escalada frequentemente por marinheiro, não restam dúvidas, tanto mais que, no ano de 1513, os Monges da Ordem de São Jerónimo criaram na ilha - por proposta de Frei Gabriel à sua confessada, a rainha Dona Maria, esposa de Dom Manuel - o Mosteiro das Berlengas, com invocação de Nossa Senhora da Misericórdia. O Mosteiro foi fundado pela lembrança que a rainha teve de que aqueles monges poderiam ser úteis aos navegantes quando estes ali desembarcavam, não só por acharem quem lhes pudesse administrar os sacramentos mas também para poderem ouvir os ofícios divinos.

Pouco tempo se conservaram na ilha os monges. Entre os motivos apontados para a curta permanência da ordem, encontrava-se não só a escassez de alimentos – por a terra produzir pouco e o mar ser muito bravo, estando muitas vezes privados de quem os abastecesse – mas também por, repetidas vezes, a ilha ser acometida por piratas barbarescos e turcos. Mesmo descontando estas ocorrências singulares, os frades morriam amiúde “com doenças, sem terem que os curasse e caindo pelos rochedos” - curiosamente, os testemunhos orais que davam como certa a existência de despojos humanos associados ao local de implantação do Mosteiro, puderam ser confirmados o ano passado com a recolha de materiais osteológicos humanos descontextualizados.

Não se sabe ao certo em que ano foi o Mosteiro abandonado mas julga-se que foi em 1545, ano em que os doze frades das Berlengas se passaram para Vale Benfeito, no continente. Deixado ao abandono, o Mosteiro caiu em ruínas, sendo a sua cantaria do utilizada mais tarde na construção da fortaleza de São João Baptista
Esta primeira tentativa de ocupação permanente da ilha poderá ter tido antecedentes com a construção, em 1502 e também por iniciativa de D. Manuel, de uma fortaleza. Esta fortaleza, aparentemente mandada reparar mais tarde por D. Sebastião, não terá assumido grande porte já que, com o incremento das incursões de piratas argelinos comandados por renegados europeus, pelo Atlântico dentro, Filipe II de Espanha ordenou a construção de novas fortalezas costeiras, entre as quais se contava uma na ilha das Berlengas. Aparentemente, a sua construção foi demorada, já que 14 anos após a Restauração, os mesmos piratas derrubaram a tiros de bombarda as muralhas ainda incompletas existentes na ilha.

Em todo o caso, só com D. João IV se terá dado à tarefa a importância devida, com a ida à ilha de João Rodrigues de Sá em 1651. A construção, realizada pelo engenheiro régio Mateus do Couto, desenvolveu-se sobre um ilhéu - ligado à ilha por uma ponte em alvenaria, sobre arcadas - havendo ainda lugar à construção de um pequeno ancoradouro, do lado norte. A planta é octogonal irregular, com as casamatas adossadas à muralha exterior, virada a terra, e com o paiol localizado no corpo prismático central.

Sentinela isolada e solitária, a sua grande hora chegou em 1666, quando quinze navios de uma armada espanhola, sob o comando do almirante D. Diogo de Ibarra, procuraram conquistar a fortaleza e apossar-se das Berlengas, no propósito de interceptar a frota francesa que trazia para Portugal a noiva de D. Afonso VI, D. Maria Francisca Isabel de Sabóia.

Após dois dias de combate, os 22 soldados portugueses comandados pelo cabo António Avelar Pessoa, tinham morto cerca de 500 espanhóis, afundado um navio e danificado seriamente outros dois. Quando os portugueses ficaram sem munições e sem comida, Ibarra conquistou a ilha e mandou destruir o forte. Face ao valor estratégico da Fortaleza, novas obras de beneficiação foram empreendidas, sob a direcção do Marquês da Fronteira, sendo concluídas em 1678. A fortaleza serviu mais tarde como local de desterro e também como pouso secreto de sabotadores ingleses durante as invasões napoleónicas. Descobertos, os franceses ripostaram, novamente arruinando o edifício, tendo Dom João VI ordenado a sua reconstrução em 1822. Em 1833, a fortaleza foi ocupada, sem grande resistência, pelas tropas liberais, que fizeram dela o ponto de apoio para a conquista da cidadela de Peniche.

O potencial arqueológica do arquipélago

À semelhança do que ocorre com a ilha do Pessegueiro - em que escavações arqueológicas mostraram uma ocupação romana compreendida entre os séculos I e IV d.C. - é de supor que um território deste tipo, a uma distância confortável da costa e rica em recursos naturais, tenha atraído pescadores que se estabeleceram na ilha de uma forma mais ou menos permanente, à semelhança do que ocorre hoje em dia. Com efeito, na escavação arqueológica conduzida no ano passado pelas arqueólogas Jacinta Bugalhão e Sandra Lourenço, do Instituto Português de Arqueologia, foram encontrados, não só vestígios do Mosteiro, como também - e algo surpreendentemente - materiais arqueológicos romanos, em quantidade, qualidade e diversidade tipológica e cronológica (República, Alto e Baixo Império) que sugerem uma ocupação, se não continuada no tempo, pelo menos frequente. A presença de material de construção, nomeadamente tegulae, poderá indiciar a existência de estruturas construídas no local, em cota mais elevada, preservadas ou não.
Já no que respeita a achados subaquáticos - para além das bocas de fogo assinaladas junto à fortaleza e a um esplêndido berço em bronze de tipologia manuelina, recuperado em 1982 e a 25 metros de profundidade por uma equipa do Museu do Mar de Cascais – destacam-se os vestígios da Antiguidade, nomeadamente ânforas e cepos.

Não é possível estabelecer com segurança as razões das perdas dos cepos descobertos nas Berlengas, tanto mais que a maioria dos fundos onde os achados se verificaram não é de molde a justificar, aparentemente, perdas por prisão ou retenção. Naturalmente, nestas condições, a hipóteses de provirem de naufrágios parece aliciante, mas até à data nenhuma evidência arqueológica permite ainda fundamentar esta hipótese.

Quanto às ânforas – que, enquanto carga de barcos nos permitem aferir cronologias por associação entre vários tipos e variantes de ânforas ou com outros materiais datáveis, assim como rotas de tráfico marítimo - estão muito longe de ter a importância de que à primeira vista se poderia pensar. Com efeito, trata-se de materiais de associação duvidosa e até mesmo de localização imprecisa, numa disposição consistente com existência de um fundeadouro milenar.

Por outro lado, se esta relativamente “elevada” taxa de localização de ânforas e cepos de chumbo é justificável por a Berlenga ser uma das áreas do país mais frequentada por mergulhadores amadores – facto naturalmente propício a uma maior frequência de descobertas - isso não impede que seja colocada a hipótese de se estar em presença de vestígios de naufrágios. Tal hipótese poderá ser corroborada pelo facto de existir, percentualmente, uma grande concentração de ânforas do tipo Haltern 70 a indiciar um naufrágio datável de cerca do século I a.C. e até por terem existido cepos muito próximos uns dos outros, nas proximidades dos quais foram achados fragmentos de cerâmica.

Mas, mais uma vez, esta hipótese perde consistência pela até não verificação da existência de madeirame e pela dispersão dos achados, o que parece apontar para que as Berlengas tenham sido, antes como agora, uma concorrida zona de abrigo, de escala e de espera de condições de navegação propícias, para além de, como é óbvio, haver ainda uma zona de ancoradouro no apoio ao povoado insular.

O que não quer dizer que não existam mais naufrágios, para além dos referenciados neste artigo. Estamos em crer que o potencial arqueológico desta ilhas é imenso. Para tal contribuem as boas condições de preservação dos fundos arenosos, a relativa profundidade, a navigabilidade perigosa destas paragens – se em pleno século XX, ocorreram tantos naufrágios, por força maior ocorreriam muitos mais nos séculos antecedentes – e o relativo desconhecimento dos fundos em volta. Quem sabe que surpresas nos reservará o próximo mergulho nas Berlengas?

Para saber mais:

ALVES, F. et al (1989) Os cepos de âncora em chumbo descobertos em águas portuguesas – contribuição para uma reflexão sobre a navegação ao longo da costa atlântica da Península Ibérica na Antiguidade. In O Arqueólogo Português, série IV. Vol. 6/7.
ALVES, F. (1994) Os dois cepos de âncora em chumbo pré-romanos da ilha Berlenga. Relatório. Lisboa: Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática
BANDEIRA, L. (1984) “Berço Manuelino” recuperado ao largo das Berlengas. In Série Arqueológica, vol. 1, Museu do Mar. Cascais: Câmara Municipal de Cascais.
BUGALHÃO, J. & LOURENÇO, S. (2001) Ilha da Berlenga, Bairro dos Pescadores: relatório dos trabalhos arqueológicos. Relatório interno. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia
DIOGO, A. (1999) Ânforas provenientes de achados marítimos na costa portuguesa. In Revista Portuguesa de Arqueologia, 2:1. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia.
FERREIRO LOPEZ, M. (1988) La campaña militar de Cesar en el año 61. In MENAUT, G. ed., Actas del 1º Congreso Peninsular de Historia Antigua. Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela.
SANTOS, J. (1994) As Berlengas e os Piratas. Lisboa: Academia de Marinha
TRINDADE, J. (1985) Memórias Históricas. Lisboa: INCM/Câmara Municipal de Óbidos.
posted by Alexandre @ 14:08