Naufragios
H.M.S. Bounty: arqueologia de dois naufrágios
O motim mais relevante jamais ocorrido na história da marinha de guerra sucedeu em 1797, em Spithead, na Inglaterra, com toda uma armada a recusar-se a fazer-se ao mar. E isto em plena Guerra Revolucionária contra a França (1793 - 1801). Este motim - que ocorreu em protesto contra as más condições em que serviam os marinheiros e que foi o mais relevante porque acabaram por ter sido satisfeitas pelo Almirantado todas as reivindicações dos revoltosos - não é contudo o mais famoso da história da Royal Navy.
Curiosamente foram dois veteranos da Primeira Guerra Mundial, Nordhoff e Hall que, ao escrever uma trilogia sobre um motim até então esquecido - Mutiny on the Bounty, Men Against the Sea e Pitcairn’s Island - deram origem a três filmes que levaram à nossa consciência colectiva a história há muito esquecida de William Bligh e de Fletcher Christian.
A HMS Bounty
A missão da Bounty era deveras sensível. Com efeito, a Revolução Americana tinha desmembrado um proveitoso comércio triangular em que as cidades norte-americanas costeiras, como Nova Iorque e Filadélfia, enviavam farinha para a alimentação dos escravos das ilhas das Caraíbas, recebendo em troca rum e açúcar, com que depois pagavam as manufacturas inglesas que lhes chegavam da velha Albion.
Com a Independência, essa fonte de alimentação para os escravos chegou ao fim, para desespero dos agricultores americanos e preocupação dos donos das plantações insulares. Joseph Banks, um naturalista que tinha acompanhado a última viagem de Cook ao Pacífico, sugeriu então que se procedesse ao transplante de fruta-pão, a partir da ilha de Tahiti, para as Caraíbas, de modo a substituir o trigo que então faltava.
O Almirantado inglês decidiu então converter um antigo navio mercante de 210 toneladas, o Bethia, numa autêntica estufa flutuante. Este navio, com cerca de 27 metros de convés e com 7 metros de largura, foi levado para os estaleiros de Deptford, onde iniciou a sua conversão, a 26 de Maio de 1787.
O espaço ficou tão exíguo que não houve sequer lugar para embarcar o contingente usual de fuzileiros navais que costumava proteger o corpo de oficiais. Para comandante do navio, Banks escolheu o tenente William Bligh, que tinha conhecido como um dos companheiros de Cook e que era considerado como um dos seus melhores navegadores. Depois de ter servido, durante cinco anos - e a meio salário -como capitão de um navio mercante, Bligh era, aos 31 anos, o único oficial de carreira a bordo do Bethia, agora renomeado His Majesty Ship Bounty, em honra da recompensa dada por Jorge III aos mercadores das Caraíbas.
Depois de recoberto com um forro de cobre e de ter sido armado com quatro canhões de 4 libras, o navio largou de Spithead a 23 de Dezembro de 1787, com rumo ao Tahiti. Assim que chegou ao Tahiti, a 26 de Outubro de 1788, a tripulação começou a esquecer-se que estava sob um regime marcial, negligenciando os seus deveres e mostrando cada vez mais apetência para confraternizar com as nativas do que em carregar o navio com os plantios de fruta-pão.
Bligh viu-se mesmo forçado, em várias ocasiões, a repreender em público o seu imediato, Fletcher Christian. Quando partiram da ilha, a 4 de Abril de 1789, quase todos os tripulantes voltaram à realidade crua da vida no mar do século XVIII. O choque foi tão grande que um sentimento de amotinação perpassou por alguns deles. Christian chegou a preparar uma jangada, através da qual pretendia escapar-se do navio, no que foi dissuadido por Edward Young, outro dos amotinados.
Na madrugada de 28 de Abril, Christian fez embarcar, a bordo da lancha do navio, William Bligh juntamente com 18 marinheiros que se lhe manteram fieis, tendo retornado ao Tahiti, onde deixou parte da tripulação e de onde partiu em busca de um lugar recôndito onde não o pudessem encontrar. Bligh cruzou cerca de 3600 milhas até chegar ao porto holandês de Coupang, em Timor-Ocidental, de onde partiu para Inglaterra.
A 15 de Janeiro de 1790, a Bounty chegava - depois de fazer escala em Tubuai e no Tahiti, onde deixou a maioria da tripulação - à ilha de Pitcairn, local isolado, descoberto em 1766 por Carteret e por ele descrito no seu livro Hawkesworth’s Voyages - livro esse que fazia parte da biblioteca do navio. Uma semana depois, um dos amotinados incendiou o navio, após este ter sido despojado de tudo o que pudesse ter valor. Para sempre a sua localização permaneceu um mistério até que, em 1841, o Capitão Jenkin Jones do H.M.S. Curaçao levantou do fundo do mar, em Bounty Bay, algumas madeiras enegrecidas de carvalho. Em 1933, Parkin Christian e Robert Young, dois pescadores de Pitcairn, levantam do fundo da mesma baía um leme, com duas fêmeas em bronze, ainda a ele ligadas. Esse leme encontra-se agora num museu de Suva, uma das ilhas Fiji.
Em 1957, Luis Marden mergulhou na baía e descobriu, junto à costa, um aglomerado de placas de ferro - que faziam parte do lastro do navio - bem como várias cavilhas e pregos de cobre do forro do navio. Mais tarde, Marden recuperou, no exterior de Bounty Bay, uma das âncoras do navio.
Não só dentro de água se encontravam os vestígios da embarcação. Na ilha ainda hoje se podem ver algumas das relíquias originais da Bounty: uma jarra de barro, a bíblia de bordo e a chaleira de cobre onde William McCoy destilava a aguardente que o haveria de levar à morte.
Peter Gener, do Museu de Queensland, considera que os restos da Bounty relevam de fraco potencial arqueológico devido ao facto de se encontrarem numa zona de fraca profundidade e de extrema dinâmica. No entanto, Nigel Erskine, um pós-graduado em arqueologia subaquática pela Universidade australiana de James Cook, tenciona proceder à primeira escavação arqueológica dos restos da Bounty, já durante o verão do próximo ano
A HMS Pandora
De modo a punir os amotinados, o Almirantado britânico fez aparelhar a fragata HMS Pandora, onde seguiam, como tenentes da Marinha, dois antigos fieis de Bligh, Hayward e Hayllet, que conheciam todos os amotinados.
Este navio, de 24 canhões e com 160 tripulantes, fez-se rumo ao Tahiti onde, depois de ancorar na baía de Matavai, aprisionou os amotinados que lá tinham permanecido. Sob o comando cruel do capitão Edwards, os presos foram postos a ferros numa jaula de madeira colocada no convés. O sol inclemente, o espaço reduzido e as más condições de higiene prontamente lhe dão a alcunha de Caixa de Pandora.
No entanto, o azar bateu à porta de Edwards. A 29 de Agosto de 1791, a fragata encalhou na Grande Barreira de Coral e afundou-se em poucas horas, levando para o fundo quatro dos presos, ainda acorrentados ao navio. As 4 lanchas do navio levaram então os 98 sobreviventes numa repetição irónica do que fora a viagem de Bligh até Timor. A 13 de Setembro, Edwards chega a Coupang e de lá prossegue até ao Reino Unido, onde se procedeu ao julgamento dos amotinados sobreviventes.
Em 1977, Ben Cropp e Steve Domm, mergulhadores australianos, pediram o apoio de um avião da Força Aérea, que a bordo levava aparelhos de detecção remota. Após uma busca de vários dias, encontraram um alvo promissor na costa norte de Queensland, junto à Nova Guiné, na posição 11º 22’ 21’’S e 143º 59’ 21’’E. Uma rápida inspecção, a 30 metros de profundidade, revelou que uma das peças do leme, que fora recuperada, tinha inscrito o número 24, que era o total de peças de artilharia que o Pandora armava. A identificação era positiva, o que levou o Governo Australiano a classificar o naufrágio como local protegido e a atribuir ao Museu de Queensland a responsabilidade pela sua escavação.
Após vários anos de escavação, os milhares de artefactos recuperados e conservados no Museu lançam luz sobre o que foi o paraíso pessoal de alguns e o inferno na terra de muitos outros.
Para saber mais:
BLIGH, W. 1789, Log of HMS Bounty, Mitchell Library, State Library of New South Wales
CUMMINS, P. 1968, Fifty Great Journeys: The Voyage of the Bounty, The Hamlyn Publishing Group,
KENNEDY, G. 1989, Captain Bligh: the man and his mutinies, Cardinal Sphere
MARDEN, L. 1957, I found the bones of the Bounty, National Geographic Magazine, Washington
MARDEN, L. 1985, Wreck of the H.M.S. Pandora, National Geographic Magazine, Washington
posted by Alexandre @ 17:31