Naufragios
De que falamos quando falamos de astrolábios?
Através do grupo de discussão sobre história náutica, escreve Jorge Matos:
"Abri o blog e comecei a ler o texto sobre o astrolábio
"O astrolábio - etimologicamente astron labein, tomar um astro - planisférico é uma invenção grega. Datada incertamente do século IX, derivou de uma aplicação da geometria euclidiana aos problemas práticos com que se deparavam os astrónomos da Antiguidade Clássica. Através dos centros helénicos dispersos por todo o Médio Oriente, entre os quais se destaca Alexandria, o conhecimento do astrolábio planisférico foi
transmitido aos árabes que o aperfeiçoaram e o aplicaram com destreza ao estudo do movimento e da posição dos astros. A primeira descrição que existe de um instrumento deste tipo é feita por Plotomeu, no século II."
Confesso que não sabia a época em que apareceu (tinha apenas a referência de que Ptolomeu o descreveu), mas fico com a impressão de que há algo no texto que não está bem. Se há uma descrição de Ptolomeu, não pode ser do século IX, porque Ptolomeu viveu no século II. Imaginei que poderia ser do séc. IX
a.C., mas se derivou de uma aplicação da geometria euclidiana, não pode ser tão prematuro, porque Euclides viveu entre o século IV e III a.C. Há aqui um lapso qualquer, que me escapa."
Realmente, há aqui questões interessantes a que vou tentar dar resposta.
De que falamos quando falamos de
astrolábios?
Falamos de uma de três coisas: esferas armilares, astrolábios planisféricos e astrolábios náuticos. É aqui que a confusão pode surgir, como surgiu com efeito por erro meu de indefinição.
O astrolábio - um instrumento que simula a esfera celeste assumindo a Terra como o seu centro - é o resultado prático de várias teorias matemáticas, nomeadamente a que foi postulada por
Apolonius (225 AC) na sua codificação das secções cónicas, depois desenvolvida por Hiparco de Niceia.
Hiparco (que nasceu na Ásia Menor em 180 AC e que estudou e trabalhou em Rodes até à sua morte em 120 AC.) foi um dos grande matemáticos da Antiguidade. O seu trabalho sobreviveu até aos nossos dias através das citações que dele foram feitas por outros matemáticos ilustres, como Ptolomeu - já que, documentalmente, da sua obra quase nada chegou até aos nossos dias.
Hiparco descobriu a precessão dos equinócios (o seu valor de 46’’ é bastante bom quando comparado com o valor actual de 50.26’’ e muito melhor que o achado por Ptolomeu, quase 300 anos depois, com 36’’) e foi um dos grandes téoricos do desenvolvimento da trigonometria.
Hiparco foi o primeiro a efectuar a divisão do círculo em 360º e descreveu também pela primeira vez a projecção estereográfica (método matemático que permite transcrever um sistema de três coordenadas, tridimensional, num plano bidimensional - a aplicação prática desta projecção, num instrumento, é-nos dada pela primeira vez no De Architectura, de Vitruvius (88 – 26 AC), na descrição de uma clepsidra feita por Ctesibius de Alexandria).
Central a estas teorias estava a obra
Elementos de Euclides de Alexandria (325 AC - 265 AC), composta por 13 volumes (contendo 465 proposições, 93 problemas e 372 teoremas ).
Os livros I a VI referem-se à geometria plana (I e II com as propriedades dos triângulos, paralelas, paralelogramas, rectângulos e quadrados. III com as propriedades básicas do círculo, IV com problemas sobre o círculo, V relativo a magnitudes mensuráveis e incomensuráveis, e VI com as aplicações do livro V à geometria plana)
Os livros VII a IX lidam com a teoria numérica geral. O livro X lida com os números irracionais e os livros XI a XIII com a geometria tridimensional.
Euclides baseou-se nos seus predecessores gregos (os Pitagóricos, nos livros I, II, III, IV, VII e IX, os Arquitas no livro VIII, Eudoxon nos livros V, VI e XII e Taeteto nos livros X e XIII), organizando as matérias de um modo sistemático a partir de princípios e definições e procedendo ao seu desenvolvimento por via dedutiva (criando o chamado método axiomático, que dominou o mundo matemático durante mais de vinte séculos).
Euclides distinguiu também as noções comuns (ou axiomas) - afirmações inquestionáveis, evidentes por si mesmas que constituem os princípios da teoria e não precisam de ser demonstradas – dos postulados - proposições que não são evidentes por si mesmas mas, tal como os axiomas, não necessitam de demonstração - e dos teoremas – que são afirmações que se demonstram a partir dos axiomas.
Os cinco postulados de Euclides eram:
1) De um ponto a outro ponto podemos traçar uma recta.
2) Dada um recta é sempre possível prolongá-la num sentido e no outro.
3) De um ponto dado, com um raio qualquer, podemos descrever um círculo.
4) Todos os ângulos rectos são iguais.
5) Quando duas rectas A e B, cortadas por uma transversal S, formarem ângulos internos do mesmo lado não suplementares, as ditas rectas prolongadas suficientemente, encontram-se do lado em que a soma dos ângulos internos for menor.
O
Quinto Postulado de Euclides (ou postulado das paralelas) foi, desde o início, objecto de polémica, principalmente por não possuir, aparentemente, o mesmo grau de evidência que os restantes postulados (observe-se que, até há pouco mais de cem anos, a auto-evidência de um postulado era uma condição necessária da sua aceitação)
Ao negar o quinto postulado de Euclides que afirma a unicidade das paralelas, temos duas possibilidades: ou admitimos a existência de pelo menos duas paralelas, o que é equivalente a existência de uma infinidade delas, como fizemos para descobrir e estudar as chamadas geometrias hiperbólicas, ou podemos negar a existência de paralelas. (Em 1832, Lobatchevsky mostrou que se considerássemos como quinto postulado «por um ponto exterior a uma recta passam uma infinidade de rectas paralelas à dada», obteríamos uma geometria perfeita coerente - a Geometria Hiperbólica que Einstein mais tarde utilizou para interpretar o universo. (Em 1854, Riemann utilizou como quinto postulado «por um ponto exterior a uma recta não passa nenhuma recta paralela à dada» e criou assim a Geometria Esférica, que tem como modelo a Terra.)
Basicamente, é o quinto postulado que distingue a Geometria não Euclidiana da Geometria Euclidiana. O que nos leva a afirmar que, pelo menos até ao século XIX, todos os cálculos geométricos eram baseados na geometria euclidiana (que servia para, por exemplo, graduar o círculo do astrolábio, utilizando um compasso, originando 24 segmentos de 15º para as bissecções; ia-sedepois até à precisão do grau com trisecções feitas por tentativa e erro)
Quando e onde é que a teoria da projecção foi realmente aplicada na construção de um astrolábio é algo que ainda não se sabe.
Theon de Alexandria (circa 390) escreveu um tratado do astrolábio e preparou a revisão que se conhece dos Elementos de Euclides – 700 anos depois do trabalho original.
Pela mesma altura, Sinésius de Cirene (378-430) – discípulo de
Hipatia, filha de Theon - descreve um instrumento vagamente semelhante a um astrolábio. No entanto, só com Philoponos de Alexandria (ou Joannes Grammaticus), no século VI DC é que se consegue ter a descrição documental da construção e utilização de um astrolábio.
É desenvolvendo a teoria de Hiparco, que muito admirava, que surge
Ptolomeu (85-165). A obra mais importante de Ptolomeu é a Síntese Matemática, - ou He megále sýntaxis (a grande sintaxe), também intitulada Ho megas astronomos (o grande astrónomo) e que passou à História com o nome de Almagesto - os astrónomos árabes usaram o superlativo Magiste (o maior) para se referirem à obra, ao qual foi acrescentado o artigo árabe Al.
O Almagesto é um compêndio astronómico composto por 13 livros, nos quais se apresentam e desenvolvem argumentos a favor da teoria geocêntrica do universo. Trabalho de natureza enciclopédica, o Almagesto tornou-se o principal texto sobre astronomia nos dezasseis séculos seguintes, até que Kepler forneceu os argumentos que consolidaram definitivamente a teoria heliocêntrica formulada por Copérnico. O Almagesto veio a servir, por exemplo, de inspiração às tabelas astronómicas medievais de Afonso X, de Abraão Zacuto (1473) e de Munique (1509).
No I livro Ptolomeu defende, em linhas gerais, a teoria geocêntrica; o II contém uma tabela de cordas e rudimentos de trigonometria esférica; no II do movimento do Sol e da duração do ano; o IV livro trata do movimento da Lua e da duração dos meses; o V livro abrange as mesmas questões tratadas no quarto, bem como as distâncias do Sol e da Lua, além de descrever o astrolábio; os eclipses do Sol e da Lua são tratados no VI livro, que contém uma tabela desses acontecimentos, além de uma tabela de conjunções e aposições dos planetas; os dois livros seguintes, o VII e o VIII, trazem um catálogo de 1022 estrelas; os cinco últimos, finalmente, são dedicados exclusivamente à exposição detalhada da teoria geocêntrica.
No livro V, capítulo I, Ptolomeu explica a construção do Astrolábio e expõe questões de trigonometria rectilínea e esférica. Estas questões foram posteriormente aprofundadas em Haplosis epipháneias sphaíras (Sobre a projecção das esferas ) e no Planisphaerium em que se ocupa com a projecção de estereográfica da esfera celestial sobre um objecto no espaço.
É de notar que Ptolomeu designa por astrolábio a esfera armilar (instrumento astronómico, constituído de numerosos anéis metálicos – armillae - que representam os principais círculos da esfera celeste) que os árabes combinaram com o globo celeste e aperfeiçoaram criando assim o astrolábio esférico. (De acordo com uma lenda árabe a transformação do astrolábio esférico em planisférico ocorreu quando Ptolomeu, montado num burro, deixou cair o que usava para efectuar uma medição, tendo o asno pisado o instrumento planificando-o….)
No
Islão, a introdução da teoria do astrolábio e, eventualmente do próprio instrumento, deu-se a partir do século VIII, com a publicação de tratados islâmicos no século IX – o mais conhecido é o da autoria de Massalah. Estes tratados viriam a influenciar o Ocidente, aquando da sua retroversão para latim (como aconteceu por
Adelardo de Bath (1075-1160) na elaboração de tratados medievais como como, por exemplo, o de
Jordanus de Nemoro (morto num naufrágio em 1237): o De Plana Esfera, um tratado de geometria sobre a projecção estereográfica usada com o astrolábio planisférico - o exemplar de astrolábio mais antigo que se conhece é islâmico e data de 927 DC.
Concluindo:
1) o astrolábio que Ptolomeu descreveu,no século II, era esférico e não planisférico, como erradamente o meu texto anterior dava a entender;
2) terá sido no século IX que o astrolábio
planisférico terá sido criado pela escola islâmica influenciada por Alexandria;
3) a geometria usada em qualquer um destes instrumentos era a euclidiana;
4) os
portugueses terão desenvolvido o astrolábio planisférico, simplificando-o, criando o
astrolábio náutico. E é este o astrolábio que nos vem à memória sempre que pensamos em astrolábios..
Para saber mais:
DESTOMBES, Marcel, 1987 Deux Astrolabes Nautiques Inédits de J. et A. de Goes, Lisbonne, 1608, 1648, RUC, Coimbra, 1969, vol. XXIV (I Reunião de História da Náutica) 189-197 (reed. Coimbra: AECA, 1969, sep. XXXII; reed. in Selected Contributions to the History of Cartography and Scientific Instruments, Utrecht: HES).
GUEDES, Max Justo 1983, Considerações sobre um Astrolábio Náutico Assinado e Datado, Encontrado Recentemente na Bahia, Navigator, Rio de Janeiro: SDGM, n. 19, Jan.-Dez., 3-10.
HOGENDIJK, Jan P.
- 1981, How trisections of the angle were transmitted from Greek to Islamic geometry. Historia Mathematica 8 pp. 417-438.
- 1983, Ibn al-Haytham's Completion of the Conics: Critical edition with translation and commentary of an 11th century reconstruction of Book VIII of Apollonius' Conics. Ph. D. thesis. Utrecht,
- 1993, The Arabic version of Euclid's On Division. In: M. Folkerts, J.P. Hogendijk (eds.): Vestigia Mathematica. Studies in medieval and early modern mathematics in honour of H.L.L. Busard., Amsterdam (Rodopi) , pp. 143-162
REIS, A. Estácio dos,
- 1985, Duas Notas sobre Astrolábios, Lisboa: CEHCA, 1985 (sep. 170).
- 1989, Astrolábios Portugueses Adquiridos em Nova Iorque, Oceanos, Lisboa: CNCDP, 1989, n. 2, 32-36.
- 1989, "Um Outro Tipo de Astrolábio Náutico", in Actas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época, vol. II, Porto: Universidade do Porto - CNCDP, 1989, 329-340.
WATERS, David, The Sea-or Mariners Astrolabe, Revista da Faculdade de Ciências, vol. XXXIX (reed. Coimbra: AECA, 1966, sep. XV).
posted by Alexandre @ 19:14